Gambozino é uma animal imaginário.
Andar aos gambozinos, significa andar à toa, vaguear, vadiar, vagabundear.
É isto que eu prendendo: vaguear por vários assuntos, vários lugares, ao correr da imaginação e da disposição.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Mês de Orlando Ribeiro

Fundação de São Paulo. Foto da Wikipédia

"Destino e prestígio de São Paulo
Há quatrocentos anos, uma fundação religiosa modestíssima criava o germe de uma cidade nova numa região que se pode considerar desfavorecida. O solo era pobre, o clima áspero. O clima de São Paulo não tem,  de modo nenhum, a doçura tropical. Se por um lado possui os altos e baixos de temperatura que estimulam o organismo dos imigrantes europeus, por outro lado a garoa ou nevoeiro é molesto e provoca afecções respiratórias frequentes entre eles. São Paulo está mal colocado, afogado de certo modo nas perspectivas da sua expansão, entre a serra do Mar pelo norte e a serra da Cantareira pelo sul. São Paulo fica no meio de uma terra sulcada de rios, com várzeas pantanosas, alagadiças, que durante muito tempo foram um obstáculo a que o povoamento as invadisse, expandindo-se a cidade, não ao longo dos vales, mas sobretudo nos interflúvios, em retalhos de planalto que os rios separam uns dos outros. Mas São Paulo tem, para compensar, um sítio desvantajoso, uma situação extraordinariamente favorável, uma situação que é realmente a mesma da velha aldeia de Piratininga, uma "boca de sertão", uma cidade com um porto de mar próximo e um caminho sempre aberto para o interior. Isto fez a fortuna das suas "bandeiras" e um como anúncio da sua expansão comercial através de todo o imenso território do Brasil.
São Paulo não é uma cidade bonita. Permito-me apenas citar o depoimento de Aroldo de Azevedo que, se como paulista ama entranhadamente a sua terra, como geógrafo procura ser, mesmo com ela, objectivo. "Não tem nenhuma das belezas que fazem o encanto da cidade do Rio de Janeiro, nem o pitoresco da cidade pernambucana, nem o aspecto urbanizado de Belo Horizonte." É uma cidade americana na sua fisionomia, na estrutura da população, na medida que adoptou para todas as coisas, medida constituída  muito menos pelos valores espirituais do que pelo dinheiro, pela velocidade, pela eficiência, pelo culto destes três grandes deuses que dominam o mundo moderno. É uma cidade que certamente um europeu precisa de fazer um esforço para amar. Faltam-lhe aqueles pontos de referência para nós habituais, uma antiguidade, uma nobreza que só o tempo dá, uma riqueza de monumentos (esta cidade de há quatrocentos anos não tem uma velha igreja!); faltam-lhe os arrabaldes rurais que de certo modo tornam ainda, por contraste, mais vigorosa uma expressão urbana. Quem levantar voo de São Paulo para pousar em Lima, do outro lado dos Andes, notará um contraste extraordinário entre esta cidade que quase se diria banal e aquela rara flor de encanto ibérico, a que nenhum americanismo ainda murchou qualquer pétala.
Mas, se São Paulo não é uma cidade de que se goste, sobretudo nas impressões de um primeiro contacto, se é uma cidade desnorteante para aqueles valores urbanos a que um europeu está habituado, é, em todo o caso, para um homem de estudo, um grande tema de reflexão. São Paulo exemplifica talvez, com mais clareza do que qualquer outra cidade do mundo, um dos temas  da vida dos nossos dias: a atracção urbana, um cadinho de gentes, a possibilidade de trazer imigrantes de toda a parte fundindo-os, a despeito da desigualdade de raças, num tipo temperamental único; é um lugar exíguo onde as populações lutam pelo trabalho,  para onde os homens vêm porque acreditam que, tornando-se cidadãos desta cidade, redimem a miséria do seu passado. São Paulo é, nesse sentido, realmente um símbolo do Brasil de hoje: uma grande experiência humana, experiência cujos resultados não podem seguir-se sem inquietação, mas experiência realmente feita à escala das enormes proporções deste país e que os espíritos reflexivos não podem deixar de seguir com entusiasmo."

Orlando Ribeiro (1994). "São Paulo. Do Campo da Piratininga à Metrópole do Brasil". Opúsculos Geográficos. V Volume: Temas Urbanos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp 488-490.
(Artigo publicado pela primeira vez em 1955)

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